A pirâmide de Bird - Parte II
Em 1986, chegava ao mercado editorial norte-americano o livro “Liderança Prática em Controle de Perdas” (Practical Loss Control Leadership, no título original em Inglês – o livro não foi traduzido para o português), de Frank Bird Jr. e George Germain. A obra logo se tornaria um marco para a Segurança Industrial e trouxe consigo uma filosofia de trabalho que formou várias gerações de profissionais desde então. Bird já havia publicado outras obras, mas foi no “Liderança” que ele reuniu teoria e prática como em nenhuma outra antes e, como veremos, o livro tem grande influência na forma como enxergamos Segurança atualmente. Foi esta a publicação que tornou mundialmente famosa a “Pirâmide de Bird”, hoje uma das figuras mais difundidas e copiadas na área de Gerenciamento de Riscos Industriais. Mas será que a Pirâmide é mesmo o que parece?
De volta às origens
Talvez o senso comum seja de que o principal livro de Bird é um “estudo sobre uma Pirâmide”. A consulta ao termo “Bird pirâmide” no Google retorna mais de 200.000 resultados, reforçando a impressão. Mas, contrariando as aparências, não é exatamente sobre a Pirâmide que Bird e Germain falam na sua obra mais importante. Nem era a intenção, como veremos.
A bem da verdade, o assunto da pirâmide ocupa pouco mais de 4 páginas do livro. As outras 430 páginas de “Liderança Prática em Controle de Perdas” (o livro é maior e mais pesado que um laptop) discorrem sobre uma variedade de outros temas ligados ao Gerenciamento de Risco e, especialmente, sobre as ferramentas ao alcance da liderança e suas táticas de implantação. O livro de Bird e Germain vale, com ou sem a tal pirâmide, por um curso completo em Segurança Operacional, mas sem dúvida alguma, aquele não é um tratado sobre uma pirâmide de acidentes. Mas, se é assim, por que então Bird é tão lembrado por algo que, na sua principal obra, teve tão pouca importância? Será que não estamos dando atenção demais ao molho e de menos ao peixe?
Para responder à pergunta, é primeiro necessário esclarecer que, além de não ser o foco da obra de Bird e Germain, a pirâmide de acidentes, como conceito, não é uma criação deles. Bird foi sim o responsável por popularizar a figura da pirâmide pelos quatro cantos do mundo, mas as verdadeiras origens da pirâmide estão na década de 1920, através das mãos de Herbert William Heinrich, engenheiro de uma Companhia de Seguros dos EUA. O mundo das ideias é repleto de plantios silenciosos e colheitas tardias e, antes mesmo de Frank Bird vir ao mundo (ele nasceu em 1921), Heinrich, já matutava sobre as bases teóricas que seriam, mais tarde, parte da construção da pirâmide tal como ela é. A interpretação de Bird, como veremos depois, é diferente da de Heinrich.
Depois de analisar 75.000 acidentes, Heinrich publicou no seu livro “Industrial Accident Prevention”, de 1931, a teoria em que afirmava haver uma proporção definida entre a quantidade de acidentes e sua gravidade: para cada 1 lesão séria, haveria 29 lesões menores e outros 300 acidentes sem lesão (quer dizer, 1:29:300).
Esta relação foi ilustrada por um triângulo, chamado de Triângulo de Heinrich (veja figura na próxima página).
Willian Heinrich é também o responsável pela famosa teoria de que 90% dos acidentes são causados pelo que ele chamou de “atos inseguros” (o número era 88%, para ser mais exato). Se você já ouviu algo do tipo antes, talvez seja útil saber que esta teoria nasceu há 90 anos e é, ao mesmo tempo, uma das afirmações mais chocantes e menos questionadas de toda a história da Segurança Industrial. O mantra que diz que “90% dos acidentes são causados por atos inseguros” é hoje entoado sem a menor cerimônia e repetido como se fosse a mais óbvia das verdades, mas os documentos que teriam embasado o estudo de Heinrich jamais foram encontrados e o estudo ainda carece de comprovação. E, mesmo que à época o número de 88% fosse correto, como comparar o ambiente industrial daquela época com o de hoje? Em outras palavras: se é que algum dia estiveram certos, os números de Heinrich sobre atos inseguros já não valeriam mais atualmente.
Mas Heinrich não nos deixou como legado apenas seu Triângulo e suas considerações sobre os fatores puramente humanos. Seu “Industrial Accident Prevention” traz mais de 100 páginas detalhando a segurança de máquinas – especialmente os padrões de proteções de partes móveis – e, ainda mais importante, nos deixou contribuições decisivas para a disciplina da Segurança Industrial, colocando a vertente psicológica como uma das variáveis para a Gestão do Risco. Mesmo sem saber, muita gente se inspirou e ainda se inspira no trabalho de Heinrich (que não se limitou ao triângulo – é dele também a conhecida figura do dominó, depois adaptada por seus sucessores). Ao preocupar-se com Segurança Industrial numa época em que ninguém dava a menor bola para o assunto, Heinrich foi, sem dúvida, um homem à frente de seu tempo.
Heinrich vivia seus últimos anos, no início da década de 1960, quando sua teoria encontrou a trajetória profissional de Frank Bird, então funcionário de uma siderúrgica norte-americana, a Lukens Steel Company (uma das mais antigas empresas dos EUA em atividade). Quando Heinrich faleceu, em 1962, Bird já ocupava a posição de Diretor de Segurança da empresa e liderava um estudo nos mesmos moldes daquele feito por Heinrich 40 anos antes, desta vez analisando 90.000 acidentes e quase-acidentes da Lukens, num processo de coleta e análise de dados que durou 7 anos (1959-66). Neste levantamento, Bird encontrou sua própria pirâmide, em que demonstrava a proporção de 1 lesão grave para cada 100 lesões médias e 500 acidentes com perdas patrimoniais (1:100:500). Bird foi um dos principais promotores da abordagem multidisciplinar dos acidentes, levando a Gestão de Riscos a considerar não apenas os acidentes envolvendo pessoas, mas também aqueles que envolviam patrimônio e meio-ambiente. Assim, para sermos justos, devemos a visão moderna do que é um acidente - e do que realmente eles representam - ao trabalho e à visão de profissionais e entusiastas como Bird e Germain, inspirados por pioneiros como Heinrich, entre tantos outros.
Em 1968, Frank Bird deixou a Lukens para trabalhar em uma Companhia de Seguros (a Insurance Co. of North America). Lá, Bird repetiu seu estudo com um universo amostral mais amplo, com acidentes registrados num grupo de quase 300 empresas (na realidade, clientes de sua seguradora) e quase 3 bilhões de horas-homem de exposição ao risco. É deste novo estudo que nasceu a versão da Pirâmide de Bird que você provavelmente conhece.
É isso por hoje, pessoal. Muito obrigado pelo seu tempo e até a próxima. Até lá!